domingo, junho 22, 2025

Pedro...

Hoje, catorze de novembro, é o dia dos anos do meu irmão Pedro, uma das pessoas que mais amei no mundo, o único de nós que saiu moreno, de cabelo preto, quase sempre calado. Nunca invejou ninguém: era livre. Nunca disse mal de ninguém: era livre. Nunca discutiu com ninguém: era livre. Fez sempre, desde criança, o que quis: era livre. Não lhe interessava o dinheiro, nem o sucesso, nem o aplauso dos outros. Não criticava fosse quem fosse. Não falava mal de ninguém . Misterioso, secreto, muito raramente mostrava o que sentia e, apesar do seu silêncio imperturbável, percebe-se que gostava de nós, sem palavras, sem pieguices,

sem exibir emoções. Não se queixava de nada conforme, aparentemente, não se zangava com quase nada.
A pouco e pouco os pais foram-se apercebendo que não valia a pena enervarem-se com ele. Não lhes respondia que não, concordava sempre.
-- Sim, mãe, sim pai
mas apenas fazia o que lhe dava na gana,
sem argumentar.
-- Isto não é hotel, Pedro
-- Sim, mãe
-- O jantar é às oito e meia, Pedro
-- Sim , mãe
Telefonava a dizer que chegava mais tarde, a mãe
-- Mas onde é que tu estás, Pedro?
-- Do outro lado da linha, mãe
e como é que se lhe podia ralhar depois disto?
Aliás era inútil ralhar-lhe porque ele não protestava. No fim da descompostura concordava sempre
--Sim, mãe
numa serenidade amável que impedia exaltações e castigos. Uma ocasião fiz-lhe uma coisa horrível: tinha pedido que fosse lá abaixo à mercearia comprar-me papel para escrever, eu com catorze anos e ele com onze, respondeu-me tranquilamente sentado no tapete, a brincar com não sei quê
--Não vou
calmissimo
-- Não vou
eu ameacei, com medo que, indo eu à mercearia, se me acabasse a inspiração
-- Se não vais digo ao pai que tu fumas
o Pedro nem se deu à perda de tempo de falar, indiferente àquela maldade estúpida
( O que eu continuo a arrepender-me dessa sacanice)
ameacei-o de novo
-- Se não vais digo ao pai que fumas
ele continuou a brincar, completamente nas tintas, tive de ir lá buscar o papel e a inspiração acabou -se de facto, à hora de jantar o pai sentou -se à cabeceira, eu furioso com a morte de uma obra prima, interrompi o silêncio da sopa
-- Pai o Pedro fuma
o silêncio, se possível, aumentou ainda mais, à medida que eu começava a torcer-me de remorsos
( fui um cabrão)
enquanto o pai para ele, na esperança que o Pedro negasse
--Tu fumas Pedro?
Novo silêncio enquanto eu com ganas de me enforcar no candeiro do tecto
( nunca na vida fui tão cabrão)
no silêncio a voz do pai a insistir
-- tu fumas, Pedro?
esperando que o Pedro negasse, pedindo a Deus que o Pedro negasse, o pai que odiava a mentira, suplicando que o Pedro negasse, o Pedro na tranquilidade de sempre
‐- Fumo, pai
Mais silêncio durante o qual o pai me olhou com ódio, o pai de novo, num suspiro
-- Tu fumas, Pedro?
o Pedro na mesma paz inalterável
-- Fumo, pai
Um silêncio ainda mais comprido, que eu devia ter aproveitado para me suicidar, o pai num suspiro
-- Poisa a colher no prato e espera-me lá em cima
o Pedro, na paz do Senhor, poisou a colher e subiu as escadas, o pai levantou-se vertendo um olhar suspenso na minha direcção enquanto atirava o guardanapo para a toalha, voltou passados minutos a detestar-me, o Pedro não voltou, no fim do jantar mais horrível da minha vida levantamo-nos cada um para seu lado, a porta do quarto do Pedro estava fechada, encontrei-o na manhã seguinte antes de sairmos para o liceu, ele falou-me como se nada tivesse acontecido, e o pai demorou dias sem olhar para mim, eu demorei dias sem conversar com ninguém, feito em merda pela minha filha da putice e o Pedro seguia igual. Não sei se me perdoou: sei que esqueceu, e continuou a amar-me muito, conforme eu o amava muito a ele. Que eu soubesse não odiava ninguém : era um miúdo livre. Quando morreu saí do quarto dele no hospital porque o meu irmão Nuno me trouxe abraçado a dizer-me
-- Anda bebé, anda meu bebé
de maneira que além de filho dos meus pais nesse dia fui filho do Nuno. E gostei .
Manos queridos.
A maior manifestação de amor entre nós era fazermos Chichi juntos, à noite, para a cascata.
Agora mijo sozinho.
INFELIZMENTE.
ANTÓNIO LOBO ANTUNES✍
"As Outras Crónicas "

domingo, maio 11, 2025

Lisboa: Menina e Moça sempre a resistir...

 

O sol de Lisboa banha com tons dourados a fachada austera do Quartel do Carmo. Suas paredes, hoje silenciosas, guardam os ecos de um momento que transformou para sempre o destino de Portugal. Ali, no dia 25 de abril de 1974, convergiu a esperança de um povo cansado de opressão.

Pelas ruas estreitas que serpenteiam a colina, quase se pode ouvir o ruído distante dos tanques avançando, cravos vermelhos desabrochando nos canos das espingardas. O Quartel, fortaleza do regime, tornou-se paradoxalmente palco do seu fim. Marcelo Caetano, último representante de um sistema moribundo, ali se refugiou, ali se rendeu, enquanto uma revolução sem sangue florescia lá fora.

Não muito distante, outro edifício guarda histórias menos conhecidas, mas igualmente poderosas. O Museu do Aljube, antiga prisão política, ergue-se como testemunha silenciosa dos anos de chumbo. Suas celas, agora transformadas em espaços de memória, abrigaram sonhos, lágrimas e a determinação inquebrantável dos que ousaram discordar.

Nos corredores estreitos do Aljube, ressoa ainda o eco dos passos dos guardas, o tilintar das chaves, o murmúrio dos prisioneiros trocando esperanças em códigos sussurrados. Ali, a PIDE, polícia política do Estado Novo, exerceu seu poder através do medo e da tortura. Homens e mulheres foram interrogados até a exaustão, privados de sono, submetidos à infame "estátua" - tortura onde permaneciam de pé por dias.

Entre o Carmo e o Aljube, Lisboa traça uma geografia da resistência. Um mapa emocional onde cada pedra, cada esquina conta uma história de opressão, mas também de coragem e resiliência.

O Quartel do Carmo, com sua imponência militar transformada em símbolo de libertação, e o Aljube, com sua sobriedade transformada em espaço de memória e reflexão, são dois polos de uma mesma narrativa. São cicatrizes urbanas que Portugal decidiu não esconder, mas transformar em lições.

Hoje, turistas e lisboetas passam diante destes edifícios, muitos sem perceber o peso histórico que carregam. Mas para quem sabe ver, para quem se dispõe a escutar, estas paredes ainda falam. Falam de um tempo em que pensar diferente era crime, em que livros eram perigo, em que o silêncio era imposto à força.

Falam também de como, mesmo nos tempos mais sombrios, a chama da liberdade nunca se apagou completamente. De como, nas celas do Aljube ou nas ruas que levam ao Carmo, homens e mulheres comuns transformaram-se em heróis anónimos, preservando a dignidade humana quando tudo parecia perdido.

Lisboa, cidade de luz e sombra, guarda estes lugares como quem guarda cicatrizes honrosas. São marcos não apenas da história portuguesa, mas da eterna luta humana contra a tirania. Uma lembrança tangível de que regimes caem, ditadores passam, mas a busca por liberdade permanece, indomável como o rio Tejo que abraça a cidade.